Um olhar e um convite: “Vem e segue-me”
Um padre me contou certa vez que quando perguntavam por sua história preferia contar a história vocacional de um outro sacerdote que tinha mais coisas interessantes que a sua. Nas linhas que seguem partilho minha história vocacional, mas antes algumas advertências ao leitor. Como ocorreu com aquele padre, minha história não contém acontecimentos extraordinários que poderiam causar admiração, é antes de tudo tecida na normalidade da vida, com as contradições e dúvidas do caminho. Foi nas entrelinhas do tempo que aos poucos descobri a ação de Deus em minha vida. Portanto, advirto que não espere um testemunho de mudança radical depois de aventurar-me pelo mundo. É, antes de tudo, com os olhos da fé que escrevo minha vida, de alguém que foi alcançado pelo olhar de Cristo. Se deseja continuar, abrirei algumas páginas da minha vida, acompanhe-me nessa viagem de memória agradecida e…seja bem-vindo(a)!
O que mais me encanta quando olho minha história vocacional é que está escrita com muitos rostos e nomes, a começar pelos meus pais, Paulo e Maria e meu irmão Emerson. Sim, minha vocação começa no seio familiar, pelos valores cristãos e humanos que aprendi da minha família. Meus familiares souberam abrir mão da minha presença junto a eles e deixaram-me aventurar pelo mundo, em busca do meu sonho, porque também acreditaram.
Até certo tempo atrás, entrar no Seminário com 14 anos de idade era considerada vocação tardia. Hoje essa idade é vista quase como prematura. E esse foi meu caso. Ingressei aos 14 anos, em 2002. Antes, porém, há algumas notas que quero destacar. Segundo consta minhas raras lembranças da infância, aos 6 anos começa a surgir algo que não sei identificar com claridade e tampouco valorar. Recordo-me apenas de uma missa que despertou em mim o desejo de ser padre. Dizem que as coisas do coração não são para ser explicadas, apenas sentidas. Assim foi. Participava numa pequena capela de um povoado chamado Nova Ponte, no interior de Goiás e um dia quando o sacerdote celebrava a missa, sentia que aquilo era também para mim. Não sei se era por causa do modo como falava, pelas vestes que usava. Não sei. Apenas lembro-me que senti algo diferente. Sem dúvida, a comunidade à qual pertencia e minha família tiveram um papel essencial nos primeiros passos. Essa pincelada de sonho de ser padre ficou adormecida por alguns anos, quase esquecida. Coisa de criança? Poderia ser. Mas depois de uma longa hibernação o sonho despertou com força.
Aos 12 anos manifestei novamente essa vontade à dona Juraci, uma ministra da comunidade. Ela, por sua vez, apresentou-me a um sacerdote claretiano, chamado Manuel Luzón, CMF, justo aquele padre que despertou em mim o desejo de ser padre. Este acolheu-me com bastante ternura e entregou-me alguns folhetos vocacionais. Ao ler aqueles folhetos senti-me tão identificado com o significado de ser missionário que não me continha de alegria de sentir-me chamado. Num deles falava das missões em África. Será que Deus me chamava a ser missionário em terras estrangeiras? Poderia ser. Sem noção do que significava propriamente, tenho na memória o vivo desejo de ser missionário no continente africano. Logo iniciei o acompanhamento vocacional com os claretianos da Paróquia de Itapaci-GO. De modo especial com o Pe. José Maria Garcia Gil, CMF, uma leiga muito comprometida chamada Iracema e Ir. Eugenia. Em 2002, depois de 3 anos de acompanhamento recebi o convite do então animador vocacional, Pe. Márcio Silva Souza, CMF, a realizar uma experiência mais intensa no Seminário Menor de Pouso Alegre com a probabilidade de continuar. Fui, gostei e continuei. Éramos um grupo de 24 seminaristas, dos quais permanecemos na Congregação apenas 3: Rodrigo (in memoriam), Alcimar e eu os “teimosos” quanto à vocação. Não digo que foram os melhores que permanecemos, mas sim os que sentimos identificados com o carisma claretiano. Ali fiz o Ensino Médio de 2002 a 2004.
Em 2005 fui aprovado para continuar os estudos filosóficos em Batatais. Em 2007, iniciei uma etapa chamada Postulantado, uma preparação mais intensa ao Noviciado. Talvez a maior crise vocacional tenha vivido nesse período. Como disse Antonio Banderas: “A crise é o nosso estado natural, deve ser, temos que assumir e abraçar a inseguridade de nossa profissão”. Se for bem vivida a crise é uma oportunidade de crescimento. Uma pergunta me inquietava: será que Deus me chamava realmente para ser claretiano? Bem, a resposta ainda estou procurando e acredito que até o fim da vida a buscarei. Caminhar entre incertezas é próprio dos chamados bíblicos, por isso não estranho que a dúvida me acompanha. O teólogo Martin Hengel diz que “o seguimento de Jesus exige render-nos sem condições, pois todas as chamadas a segui-Lo estão dotadas de uma incondicionalidade radical que conduz à total insegurança”. Essas palavras me confortam.
Quanto à crise, alguns elementos foram fundamentais para superá-la: minha família, a comunidade do seminário, os amigos e principalmente a oração e a solidão. Sim, a solidão ajuda, não a vida solitária. É que temos medo dos “monstros” interiores que surgem quando estamos em silêncio e, por isso, recorremos aos ruídos. Definiria a solidão como a chuva que no início parece arrastar tudo com a enxurrada, depois permanece a água cristalina que irriga e dá vida à terra. A solidão permite mergulharmos na profundidade do nosso ser e descobrir a beleza da vida interior. Os desertos áridos da existência nos ajudam a avançar como peregrinos em busca de uma fonte, ou melhor, da Fonte que sacia nossa sede do infinito, do amor incondicional. Segui adiante, fui para o Noviciado.
Em 2008 fiz o Noviciado na cidade boliviana de Cochabamba com outros 3 noviços de Argentina e Paraguai. Ali pude alicerçar os pilares da vocação como claretiano consagrado: vida de oração, comunidade religiosa, votos de pobreza, castidade e obediência, carisma claretiano e a missão. Nesse período estive no Norte de Potosí, uma região de Bolívia, onde fiz uma experiência missionária com os claretianos que ali trabalham. Um certo dia, quando voltava de uma comunidade, vi uma menina parada à beira do caminho, não sei porque razão, mas vi no seu olhar a ternura de Deus. Nenhuma palavra, nenhum gesto, apenas um olhar e foi capaz de me impactar. Era como se dissesse: “Aqui me encontrarás sempre, no meio dos pobres”. Carrego essa lembrança viva de apenas um segundo com olhar de eternidade. Ao terminar o Noviciado fiz a profissão dos primeiros votos religiosos: pobreza, castidade e obediência. Era tempo de regressar ao Brasil.
Desde 2009 a 2013 em Curitiba-PR cursei teologia com o intervalo de um ano de experiência pastoral, em 2011, quando fui destinado a Moçambique, África. Santa Terezinha não estava errada quando escreveu uma carta a um sacerdote missionário na China e dizia: “Deus nos faz sonhar e Ele mesmo se encarrega de realizar nossos sonhos”. O sonho de ser missionário em África que parecia tão distante na infância, agora estava por ser concretizado. Em Moçambique ajudei principalmente na Pastoral da Criança, que estava dando os primeiros passos. Teria muitas histórias para contar dali, mas partilho uma em especial. Certo dia fui buscar areia para a reforma de uma casa e quando esperava encher a caminhonete, encontrei quatro crianças de uma mesma família. Seus pais possivelmente estavam trabalhando no campo. Ali muitas crianças tem medo dos brancos porque alguns estrangeiros raptam crianças para o tráfico. Nada de especial se não fosse a atitude de uma delas: uma pequena menina de uns 5 anos, quebrou umas castanhas de caju e me ofereceu. Era, possivelmente o almoço delas, e havia partilhado do que tinha para mim que era um estranho, um estrangeiro. Do pouco que tinha, ofereceu tudo. Não foi essa atitude que Jesus louvou quando aquela senhora depositou uma pequena moeda no Templo? Isso eu chamo Sacramento da vida, o “oitavo sacramento”, aquelas situações inesperadas, que não passam na igreja, tampouco em momentos de oração, mas nas surpresas que Deus nos faz no cotidiano e que os olhos da fé nos ajudam a ver.
De regresso a Curitiba, continuei os estudos teológicos. Em dezembro de 2012 fiz uma experiência chamada de “Segundo Noviciado”, no Chile, em preparação para assumir o sim definitivo através da consagração religiosa. Como nos custa, numa sociedade do provisório e do descartável, dizer os “sins” definitivos! No retiro inaciano de 30 dias pude reler minha história, enfrentar os medos mais terríveis e na suavidade do Espírito fazer a chamada “eleição de vida”. Embora Deus não seja claro nos propósitos que Ele tem para nós, o que nos dá a liberdade de escolha, oferece sutilmente algumas pautas para seguir Jesus. No meu caso, essas pautas encontrei na Vida Religiosa. Foi essa, por fim, a eleição de vida. Em fevereiro de 2013, na Paróquia Nossa Senhora da Luz em Pinhais-PR, disse o meu sim para sempre como religioso claretiano, através dos votos e o compromisso de viver em comunidade religiosa, Àquele que sempre disse sim, apesar das minhas incoerências. Em maio do mesmo ano recebi a ordenação diaconal de D. Moacir Vitti, na Paróquia Imaculado Coração de Maria, em Curitiba.
No 25 de janeiro de 2014, Festa da Conversão de São Paulo, fui ordenado presbítero pela imposição de mãos e oração consecratória de D. Eugène Rixen, na cidade de Nova Glória-GO, onde tudo começou. Retornar às origens era como fechar um ciclo. Mas não voltava de mãos vazias, todos aqueles olhares que marcaram minha caminhada, todas aquelas pessoas que encontrei pelo caminho, todas aquelas histórias vividas com tantos rostos e nomes, voltavam comigo. De certa forma, todos eles são eu e eu também sou eles. Como disse certa vez um profeta de nossos tempos “No final do caminho me dirão: – E tu, viveste? Amaste? E eu, sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes” (D. Pedro Casaldáliga). É a maior riqueza que levo como sacerdote: nomes e rostos que revelam a presença de Cristo.
Fui destinado como vigário paroquial e auxiliar de formação da Comunidade Claretiana de Contagem. Depois de um ano, fui destinado para estudar em Madri. A missão continua. O fato de ser enviado me salvaguarda do risco de ser autorreferencial, pois a missão pertence a Outro. Sou apenas colaborador, alguém que foi alcançado pelo olhar Daquele que me amou com amor eterno. Aprendi que o seguimento de Cristo, independentemente do modo que escolhemos, leigos, religiosos ou sacerdotes, está em duas palavras diretas e claras: “Vem e segue-me”. Ouvi-las é quase um caminho sem volta, uma aventura que supera minhas expectativas, uma narrativa que relato em primeira pessoa, mas sabendo que o protagonista da história é o Espírito que me conduz.
E uma última advertência: uma vez que detiveste o seu tempo para ler minha história, ela agora faz parte da sua. Peço que reze por mim e por todos os que se aventuram nessa viagem chamada seguimento de Cristo.
Veja aqui algumas fotos:
Fonte: Arquivo Pessoal.
“Estou no meio de vós, como aquele que serve” (Lc 22, 27)
About Author
Missionário claretiano, nasceu em Ceres-GO aos 15 de fevereiro de 1987. Ingressou no Seminário Menor da Congregação dos Missionários Claretianos em Pouso Alegre-MG no ano 2002, cursando o Ensino Médio. Entre os anos 2005 e 2007 cursou Filosofia nas Faculdades Claretianas de Batatais-SP. Fez o noviciado na cidade de Cochabamba-Bolívia, onde emitiu os Primeiros Votos Religiosos no ano 2009. Entre os anos 2009 e 2013 cursou Teologia no Studium Theologicum de Curitiba-PR, sendo que em 2011 fez uma experiência apostólica em Moçambique. Foi ordenado presbítero no ano 2014 e destinado a trabalhar na cidade de Contagem-MG como vigário paroquial e auxiliar de formação. Entre 2015 e 2017, estudou Teologia Pastoral na cidade de Madri. Permaneceu como pároco em nossa comunidade de 2019 a 2023. Atualmente é o Superior Provincial dos Missionários Claretianos no Brasil.
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